05 maio, 2007

O JOGADOR

Finalmente chegara em casa. Caminha com lassidão em direção ao corredor. Detém-se na entrada da cozinha. Congela, inamovível. Olhar fixo no vazio. Corpo enrijecido. Cabeça baixa, queixo próximo ao tórax. Traz o polegar esquerdo até o lábio inferior e, com indiferença, roça-o da esquerda para direita em movimentos contínuos, porém dosados...
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Sua tez está ensopada. Passa rispidamente a mão direita na testa crispada, enxuga o excesso. A perplexidade é incomodada pelo som emitido da cozinha, que, em um primeiro momento, não consegue distinguir. Era o som do relógio da parede.
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Segue em direção à sala de estar. Alguns passos adiante a mesa de refeições. Janelas fechadas, persianas corridas, silêncio sepulcral. Chega até a mesa. Apóia as palmas das mãos na beirada com os dedos pendendo para fora. Concentra o peso no apóio dos braços, curvando a envergadura e prolongando os ombros adiante. Contempla os pertences que compõem o ambiente. Parecem perfeitos estranhos. Tem a impressão de vê-los pela primeira vez. Sentia-se com 3 dimensões em um universo plano. O fim das possibilidades, das vertentes possíveis, dos “eus” que podia ter sido e que foram tragados pela correnteza do cotidiano, tão pouco suscetível ao imaginário criativo e tão agrilhoado aos cômodos conceitos. Se viu reduzido a um conceito de aço. A liberdade torna-se orgânica, sistemática e o pensamento humano já não respira mais o ar da originalidade, do diferente, do mundano. A busca frenética pelo nada torna-se uma doutrina com disciplina própria. Pensou: “Devo desculpas. Peço perdão à criança que fui. Por não ter procurado um novo prisma, por não ter me deixado coagir pela brisa das utopias, por não ter transformado o que um dia foi um sonho em princípio de destino. Por ter crescido e mergulhado na mediocridade. Por observar os dilemas humanos de um pedestal, com medo de me tornar passional, como se fosse algo sujo, depreciativo”. O absurdo é o sentimento mais propício para traduzir esse abismo entre o protagonista e a vida, entre o ator e seu cenário.
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Era tão ordinário quanto os objetos que vislumbrava. Não tocava o piano como Chopin. Não pintava como Velásquez. Não cantava como Sinatra. Tudo se resumia a uma sucessão de atos vinculados que compunham uma engrenagem torpe, burra, maquinal. Segunda terça carro trabalho casa jantar quarta quinta sexta. Fevereiro mesa de escritório março abril maio. Até que ela chega em um momento de olhar perdido; a consciência do todo. Ou seria do nada? E mais, seria sua vinda à tona, o início ou o fim?
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............Não deixaria carta, é patético.
............O suicídio é uma confissão tácita.
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Fez o caminho de volta ao corredor, seguiu reto até, irremediavelmente, topar com a cama. Estava no seu cômodo. Parado, deu uma última olhadela ao meu redor. Colocou as mãos na cintura, absorto em idéias confusas. Melhor assim - pensou - torna o ato mais impulsivo. Sentou do lado direito do colchão, perto da mesa-de-cabeceira. Conforme se aproximava da consumação do ato, os gestos ficavam mais viscerais. Abriu a gaveta, pegou a arma que estava envolta em um pano. Pôs o mesmo de volta na gaveta. Pela primeira vez deu de cara com sua sentença de ferro, ali, tão palpável que parecia surreal. O pensamento confuso dá lugar a uma lógica bem delineada. A iminência da morte lhe concedeu momentos de reflexão cristalina. Talvez fosse o instinto animal falando mais alto. Afinal, o corpo existe antes da consciência. E, como um sábio ancião que tenta dissuadir seu orgulhoso aprendiz, empenhava-se na luta com as forças que lhe restavam contra a inatividade do desconhecido.
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..............Silêncio
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Contudo, a inteligência é arrogante e se sobrepõe aos prudentes conselhos dos sentidos.
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Na gaveta de baixo estavam as balas. Agarrou a caixa de plástico e papelão e colocou sobre o leito. Deu vista mais uma vez no ambiente. Decide concretizar o feito na sala de visitas. Levantou-se com ambas as mãos tomadas pelos instrumentos. Atravessou mais uma vez o corredor, perfazendo o caminho de volta. Estava gelado e suando concomitantemente. Não podia se olhar no espelho, mas devia estar pasmo, principalmente nas áreas ruborizadas como as orelhas e os lábios.
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Passou pela mesa de refeições e, agora, em direção ao sofá. Sentou. Colocou o revólver calibre 38 e os projéteis na mesa quadrangular à sua frente. Estava resoluto. Colheu uma bala; coloco-a aleatoriamente no tambor; encaixou; engatilhou; adormeceu a boca do cano sobre sua têmpora direita. Fôlego. Pressionou o gatilho.
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............Silêncio.
............O telefone tilintava.
............Pela terceira vez.
............Pela quinta.
............Sétima.
............Ouvia.
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Por Vicente Massip (convidado)

2 Comments:

At 12:47 PM, Anonymous Anônimo said...

Excelente.Passou-me sentimento de dor, dúvida, abandono, tudo concentrado em uma atmosfera tensa e angustiante. Uma perspectiva de desencanto com o passado, de impotência com o presente e de covardia decidida com o futuro. O cara sentia dor...

Foi isso q entendi e achei massa.

 
At 10:35 PM, Blogger Alex de Large said...

fiquei impresionado com a densidade... uma historia extramamente intimista mas de uma universalidade impar.

vamo filmar isso aí viu?!

 

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